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Um ano após tragédia na boate Kiss, lei nacional ainda não saiu do papel – G1

20/01/2014 06h10 – Atualizado em 20/01/2014 14h09
Márcio LuizDo G1 RS
A tragédia na boate Kiss, em Santa Maria (RS), alertou para a necessidade de aprimorar a legislação de prevenção a incêndios e reforçar a fiscalização de casas noturnas, bares e similares. Um ano depois, no entanto, a lei nacional prometida por deputados federais para unificar as normas de segurança em todo o país ainda não foi votada.
Mesmo a nova legislação do Rio Grande do Sul, aprovada na Assembleia Legislativa e sancionada pelo governador Tarso Genro no final de dezembro, ainda depende de regulamentação e pode levar meses até que seja aplicada. Enquanto isso, nada impede que a sucessão de falhas que deixou 242 mortos em Santa Maria se repita em outro lugar.
Nos dias seguintes ao incêndio, a Câmara dos Deputados anunciou a criação de uma comissão externa para acompanhar os desdobramentos da tragédia e apresentar uma proposta legislativa sobre o tema. Mas a mobilização inicial dos parlamentares perdeu força ao longo dos meses. Concluído em junho do ano passado, o projeto de lei aguarda há mais de sete meses para ser levado à votação em plenário.
De acordo com o deputado Paulo Pimenta (PT-RS), que coordenou a comissão, outras proposições consideradas prioritárias passaram à frente da pauta de votações, como o programa Mais Médicos, a minirreforma eleitoral e o Marco Civil da Internet. Mas também faltou “sensibilidade” dos deputados sobre o tema, na avaliação do parlamentar. 
“Tivemos um semestre difícil, mas acho que o motivo principal [para a demora] é que talvez o impacto do que aconteceu seja diretamente proporcional à proximidade das pessoas com o fato. Eu, como morador de Santa Maria, convivo muito com a tragédia, mas para outros deputados há um certo distanciamento. E talvez isso efetivamente tenha feito com que a Casa não tenha compreendido a importância de que completássemos um ano da tragédia já com uma nova legislação em vigor no país”, afirmou Pimenta.
Segundo o deputado, o presidente da Câmara, Henrique Eduardo Alves (PMDB-RN), assumiu o compromisso de que o projeto seja votado em fevereiro, na volta do recesso parlamentar, e que já há acordo de líderes de bancada para aprovação. O deputado federal também afirma que senadores do Rio Grande do Sul e de outros estados prometeram analisar rapidamente a proposta, que depois ainda passará pela sanção presidencial.
Entre outras normas, o texto define as responsabilidades de bombeiros e agentes públicos na fiscalização dos estabelecimentos, prevê a criminalização da superlotação em casas noturnas e similares, e extingue o sistema de pagamento com comandas – todos fatores que contribuíram para a tragédia em Santa Maria. Estados e municípios continuarão a ter suas próprias leis próprias, mas deverão adaptá-las às normas e exigências da lei federal.
“O projeto enfrenta principamente a questão de impunidade, essa dificuldade que a gente tem hoje de saber com clareza quem foram os responsáveis, esse verdadeiro jogo de empurra-empurra que existe no poder público. [A lei] Define com clareza a responsabilidade da prefeitura, dos bombeiros, dos proprietários, dos técnicos que aprovam projetos, e estabelece um padrão mínimo de exigência que deve ser observado em todo o Brasil”, explicou Pimenta.
Lei estadual espera regulamentaçãoe dará mais autonomia a bombeiros
Também formulada por uma comissão especial, a nova lei estadual de prevenção a incêndios está em vigor desde o dia 26 de dezembro, mas, para ser aplicada de fato, ainda depende de regulamentação para vai definir prazos de cumprimento, valor de multas e sanções, entre outros itens.
De acordo com o deputado Adão Villaverde (PT), presidente da comissão e autor da proposta, o Executivo estadual se comprometeu a publicar o decreto regulamentar ainda no primeiro semestre de 2014. Procurada pelo G1 para comentar o assunto, a assessoria de imprensa da Casa Civil (gabinete do governador) não respondeu aos questionamentos até a publicação desta reportagem.
A regulamentação da nova lei depende da criação de um conselho estadual formado por entidades relacionadas à prevenção de incêndios, como o Corpo de Bombeiros, o Conselho Regional de Engenharia e Agronomia (Crea) do RS  e o Conselho de Arquitetura e Urbanismo (Cau) do RS, entre outros órgãos. Esse conselho deverá detalhar como a lei será aplicada, e também terá um papel normativo, consultivo e atualizador da legislação.
O comandante do Corpo de Bombeiros do estado, coronel Eviltom Pereira Diaz, diz que comissões internas foram formadas em todos os comandos regionais para elaborar as normas técnicas que darão subsídios à nova lei, além de outras sugestões da corporação. Esse trabalho, iniciado no começo de janeiro, deve ser encerrado até o final desta semana.

Entre as principais novidades da nova lei gaúcha estão: a ampliação do número de itens obrigatórios a serem considerados na elaboração do Plano de Prevenção e Proteção Contra Incêndio (PPCI), a exigência de brigadistas treinados no combate a incêndios em locais com 200 ou mais pessoas, e a exigência do alvará dos bombeiros para funcionamento de um imóvel.
Uma das maiores críticas dos bombeiros à legislação anterior era de que ela não permitia que a boate Kiss, por exemplo, fosse interditada. Na nova versão, os bombeiros terão amplos poderes de interdição e também poderão contar com um quadro técnico de especialistas para atuar na fiscalização, que não necessitará de vínculo com a Brigada Militar.
“O nível de exigência da nova lei é infinitamente superior à legislação anterior. Não haverá autorização de funcionamento de qualquer edificação sem o alvará de prevenção contra incêndios. Sob a nova legislação, a Kiss estaria fechada, a tragédia seria evitada. Se o bombeiro detectou que na edificação não há o cumprimento do que foi exigido, ele pode chegar lá e fazer a interdição”, destacou o deputado Villaverde.
Bombeiros e especialistas concordam com o deputado. Para o engenheiro civil Telmo Brentano, professor da Universidade Federal do Rio Grande do Sul (UFRGS) e da Pontifícia Universidade Católica do Rio Grande do Sul (PUCRS) e especialista em combate a incêndios em edificações, apesar de a nova lei ter deixado algumas brechas descobertas, ela parte de um texto-base bom, sobretudo quando trata das atribuições e responsabilidades do poder público.
“O que vai melhorar é a fiscalização, que era muito precária por parte das prefeituras e do Corpo de Bombeiros. A legislação do Rio Grande do Sul era uma das piores do Brasil, mas, se tivessem sido obedecido as leis ou fiscalizado a boate adequadamente, essa tragédia não teria acontecido”, analisa Brentano.

A preocupação de setores do Corpo de Bombeiros agora é sobre como atender a demanda de fiscalização imposta pela lei. Segundo o coordenador da Associação dos Bombeiros do Rio Grande do Sul (Abergs), Ubirajara Ramos, a corporação está presente em apenas 20% dos 497 municípios do estado, e ainda faltam pessoal e equipamentos.
“Com certeza, existe essa preocupação por parte dos comandantes e servidores dos bombeiros. A legislação é positiva, construtiva em fiscalizar os estabelecimentos, mas estamos preocupados em como atender a essa demanda. Até porque, por parte do estado, ainda se não mostrou preocupação em aumentar o efetivo e oferecer melhores condições de trabalho”, criticou Ramos.
Procura por PPCI subiu 236% em um ano
Se por um lado a resposta do poder público e da Justiça ao drama de Santa Maria tem sido lenta – até agora ninguém foi responsabilizado pelas 242 mortes, tanto na esfera civil quanto na criminal ou militar –, por outro já é possível notar um aumento na cultura da prevenção e na conscientização da sociedade em relação a incêndios.
Segundo dados do Crea-RS, o número de Anotações de Responsabilidade Técnica (ART) de PPCIs cresceu 236% no estado em um ano, passando de 6.679 em 2012 para 22.482 em 2013. Em Santa Maria, o número saltou de 282 para 834 no mesmo período, um crescimento de 195%.
A quantidade de ARTs recolhidas pelo Crea-RS indica que profissionais habilitados estão sendo procurados para elaborar os planos de prevenção contra incêndios. Segundo o engenheiro Luciano Ramos Fávero, que trabalha na elaboração de PPCIs, muitos empresários do setor de entretenimento foram obrigados a regularizar seus imóveis após as blitze de fiscalização deflagradas por prefeituras em todo o país. Há também quem tenha procurado orientação de profissionais por conta própria.   
“Aumentou bastante a procura por PPCIs. As pessoas se sensibilizaram, as empresas se sensibilizaram. O aumento da fiscalização também provocou isso. No meu caso, fui procurado por empresas que tinham demandas reprimidas já no domingo de manhã, logo após o evento na Kiss. Houve um aumento da procura para regularização. Houve empresas que estavam com processos relativamente parados e resolveram quase que imediatamente seguir com os processos”, revelou o engenheiro.
As novidades nas novas leis contra incêndio
Projeto de lei federal
– A lei abrange casas noturnas, bares, cinemas, teatros e estabelecimentos similares com capacidade igual ou superior a 100 pessoas, além de prédios públicos.
– Proíbe o sistema de comandas para o pagamento de entrada e consumo.

– Estabelece a exigência de alvará de prevenção e proteção contra incêndios emitido pelo Corpo de Bombeiros para que o poder público municipal forneça o alvará de licença.

– Estados e municípios terão que observar as normas técnicas expedidas pela ABNT, Inmetro ou Conmetro nas legislações contra incêndios.

– Determina a contratação de seguro de acidentes pessoais, pelos proprietários dos estabelecimentos, tendo como beneficiários seus clientes.

– O poder público municipal e o Corpo de Bombeiros deverão manter disponíveis na internet as informações referentes aos alvarás de licença ou à autorização dos estabelecimentos.

– Torna crime, com pena de seis meses a dois anos de detenção e multa, aqueles que descumprirem as determinações do Corpo de Bombeiros ou do poder público quanto à prevenção e ao combate a incêndios.

– Donos dos estabelecimentos e agentes públicos que deveriam fazer a fiscalização podem ser responsabilizados em caso de incêndio em locais irregulares.

– Prefeitos e oficiais dos bombeiros podem responder por improbidade administrativa se não obedecerem à legislação e aos prazos de vistoria e fornecimento de alvarás.
Projeto de lei estadual
– A lei aplica-se a todas os imóveis que não sejam unifamiliares exclusivamente residenciais.
– Estabelece a exigência do alvará de prevenção e proteção contra incêndios emitido pelo Corpo de Bombeiros para que o poder público municipal forneça o alvará de licença.

– Torna mais rígida a obtenção de alvarás de prevenção contra incêndios no estado. As edificações passam a ser classificadas por categorias (baixo, médio ou alto risco de incêndio) e cada uma delas terá exigências diferentes de normas e itens de segurança.
– Passa a considerar o tipo de uso das edificações, a lotação máxima, a capacidade de controle e extração de fumaça e a carga de incêndio para a elaboração do Plano de Prevenção e Proteção contra Incêndios (PPCI).
– Estabelece prazo de validade para o alvará contra incêndio dos bombeiros, de um ano para locais onde há reunião de público, com carga de incêndio média e alta e elevado risco de incêndio, e de três anos para as demais edificações.
– Estabelece a exigência de um ou mais brigadistas treinados no combate a incêndio em eventos com mais de 200 pessoas.

– As punições para infração variam entre notificação, multa, interdição e embargo. As três primeiras serão aplicadas pelo Corpo de Bombeiros, enquanto o embargo fica a cargo da prefeitura.
Entenda
O incêndio na boate Kiss, em Santa Maria, na Região Central do Rio Grande do Sul, ocorreu na madrugada do dia 27 de janeiro de 2013. A tragédia matou 242 pessoas, sendo a maioria por asfixia, e deixou mais de 630 feridos.
O fogo teve início durante uma apresentação da banda Gurizada Fandangueira e se espalhou rapidamente pela casa noturna, localizada na Rua dos Andradas, 1.925.
O local tinha capacidade para 691 pessoas, mas a suspeita é que mais de 800 estivessem no interior do estabelecimento. Os principais fatores que contribuíram para a tragédia, segundo a polícia, são: o material empregado para isolamento acústico (espuma irregular), uso de sinalizador em ambiente fechado, saída única, indício de superlotação, falhas no extintor e exaustão de ar inadequada.
Ainda estão em andamento dois processos criminais contra oito réus, sendo quatro por homicídio doloso (quando há intenção de matar) e tentativa de homicídio, e os outros quatro por falso testemunho e fraude processual. Os trabalhos estão sendo conduzidos pelo juiz Ulysses Fonseca Louzada. Sete bombeiros também estão respondendo pelo incêndio na Justiça Militar. O número inicial era oito, mas um deles fez acordo e deixou de ser réu.
Entre as pessoas que respondem por homicídio doloso (com intenção), na modalidade de “dolo eventual”, estão os sócios da boate Kiss, Elissandro Spohr (Kiko) e Mauro Hoffmann, além de dois integrantes da banda Gurizada Fandangueira, o vocalista Marcelo de Jesus dos Santos e o funcionário Luciano Bonilha Leão. Os quatro chegaram a ser presos nos dias seguintes ao incêndio, mas a Justiça concedeu liberdade provisória aos quatro em maio do ano passado. Entre os bombeiros investigados, está Moisés da Silva Fuchs, que exerceu a função de comandante do 4° Comando Regional de Bombeiros (CRB) de Santa Maria.
Atualmente, a Justiça está em fase de recolher depoimentos dos sobreviventes da tragédia. O próximo passo será ouvir testemunhas. Os réus serão os últimos a falar sobre o incêndio ao juiz. Quando essa fase for finalizada, Louzada deverá fazer a pronúncia, que é considerada uma etapa intermediária do processo.
Se o magistrado “pronunciar” o réu, ele vai a júri (a pronúncia é a ordem para ir a júri). Outra possibilidade é a chamada desclassificação, quando o juiz não manda o réu para júri, mas reconhece que houve algum tipo de crime. Nesse caso, a causa será julgada sem júri. Também existe a chance de absolvição sumária dos réus. Em todas as hipóteses, cabe recurso.
No âmbito das investigações, três delas estão sendo conduzidas pela Polícia Civil. Além dos documentos sobre as licenças concedidas à boate Kiss, um inquérito apura as atividades da empresa Hidramix, responsável pela instalação de barras antipânico na boate, e outro analisa uma suposta fraude no documento de estudo de impacto na vizinhança do prédio onde ficava a casa noturna. O Ministério Público, por sua vez, investiga as responsabilidades de servidores municipais na tragédia.
Incêndio em festa na Romênia matou 32 pessoas após show pirotécnico. Lá mais de 20 mil foram para as ruas, o que surpreendeu entidade gaúcha.

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